domingo, 2 de março de 2008

Crônica de Silvia Salgado

De sábado em O Diário

CENA DE BAR

Sílvia Salgado
silviadiassalgado@ig.com.br


Na Campos da minha infância tipos populares exibiam a sua loucura a céu aberto. Uns metiam medo na criançada, outros serviam de chacota, outros eram meio filósofos. Em cada ponto da cidade tinha um, sendo que no centro essas figuras folclóricas pontificavam. A que mais me marcou foi Sebastiana, a doida, como era conhecida. Andava em trapos, com um pano na cabeça e carregava uma trouxa amarrada a um pedaço de madeira. Eu me pelava de medo dela e só cruzava o seu caminho acompanhada por um adulto. Corria a lenda de que Sebastiana roubava criança, o que me enchia de fantasia e terror. À noite me via refém, sofrendo em suas mãos, para depois ser libertada em grande estilo. Outros compuseram a galeria de tipos populares da minha vida, personagens urbanos que se perderam, mas que de certa forma, contam um pouco da história de uma Campos que não existe mais. Acho que o último marcante foi o Mundinho. Não sei bem porque que foram sumindo das ruas, dragados pelo progresso ou quem sabe pelo fato de que fomos todos enlouquecendo e a cidade virou um grande hospício, sem nenhum maluco beleza especial?
Dias desses fui fazer o que seria um programão: tomar café no centro, matar saudades do tempo em que os jornalistas se reuniam na padaria, final da tarde para um café preto, com pão na chapa. Era o máximo! Fiz o pedido e, de repente, uma mulher desgrenhada, rasgada, pés no chão, começa a xingar, agredindo a todos que estavam no balcão. Nossos olhos se encontraram, abaixo a cabeça, constrangida: “Olha pra mim direito que eu sou gente” – me fala aos berros. “Eu não era essa bruxa, não. Eu já fui igual a você. Já tive sonhos, antes de virar esse lixo, sabia? Já fui uma mulher”. Quis falar alguma coisa, mas a retiraram logo. O tão esperado café com pão ficou intacto. Nem água descia depois de presenciar aquela catarse – a explosão de uma mulher enlouquecida, sabendo-se um trapo, ressentida na sua feminilidade. Ganhei a rua pensando no olhar duro que ela me lançou, na realidade de todas as Sebastianas que vivem por aí sem serem ouvidas, desejadas ou vistas. Talvez esse o maior drama que possa se abater sobre uma mulher...

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