O GLOBO, 25/11/12 PÁG.2 -SEGUNDO CADERNO
Caetano Veloso
Caetano Veloso
O petróleo é nosso
Se havia um preto de quem Monteiro Lobato gostava (além de Tia Nastácia, apesar das acusações não infundadas de racismo encontradiço na linguagem de seus livros), esse preto era o petróleo
Com a cabeça mais perto do lugar onde vivo. Amanhã, segunda-feira, pessoas do Rio se manifestarão publicamente para protestar contra a chamada lei Ibsen. O projeto de lei que afinal pune o Rio por ser, seguido do Espírito Santo, o principal produtor de petróleo do país, é uma peça de demagogia igualitarista que desrespeita decisões já sacramentadas e fere a constituição de 1988. Viajo a trabalho para São Paulo e só por isso não estarei fisicamente presente ao encontro.
Se havia um preto de quem Monteiro Lobato gostava (além de Tia Nastácia, apesar das acusações não infundadas de racismo encontradiço na linguagem de seus livros), esse preto era o petróleo. É um tema forte da minha infância o brado “o petróleo é nosso”. Meu pai dizia que técnicos americanos tinham vindo estudar o subsolo brasileiro e concluído que aqui não havia petróleo. Lobato, entre outros, inclusive meu pai (e toda a esquerda nacionalista e anti-imperialista), liberava a paranoia e afirmava que a conclusão dos técnicos era interessada e que os poderosos do mundo estavam guardando o petróleo brasileiro para si e para o futuro. O futuro nos disse que, afinal, o Brasil tinha, sim, petróleo. Mas não era muito. Paulo Francis adorava dizer que era menos do que de fato era. Depois o Brasil roçou a autossuficiência. E não faz muito descobriu-se que há muitíssimo mais óleo e gás nas profundezas das águas territoriais brasileiras do que as mais alvissareiras descobertas da Bacia de Campos. Lula, de modo consideravelmente sensato, sugeriu que os proventos dessas reservas gigantescas fossem mais distribuídos entre os estados e municípios da União do que a comparativamente pequena produção com que já se contava. Mas a lei proposta por Ibsen Pinheiro faz com que Macaé, com todo o gigantismo social e infraestrutural que vem com a exploração local de muito petróleo, empobreça e desorganize-se para que algum estado pobre receba mais pelo petróleo produzido do que a cidade fluminense. Sou contra.
A cidade do Rio de Janeiro, que já sofreu o grande baque de deixar de ser a capital federal (não foi um mero baque psicológico narcísico: foi também — e principalmente — queda econômica); que já teve de se revirar para absorver os efeitos da fusão; que enfrenta com surpreendente determinação a perda de territórios para chefetes de gangues criminosas não merece ser tratada pelo poder federal com tamanho desleixo. Se o Legislativo adotou a jogada demagógica que assegura sucessos eleitoreiros regionais, que o Executivo responda com altivez: que Dilma vete essa lei ou pressione para permitir uma discussão de médio prazo. E se não for o Executivo, que então seja o Judiciário. Esse Judiciário que brilhou com o discurso sóbrio de Joaquim Barbosa, o primeiro presidente negro do Supremo, assunto sobre o qual não se sabe o que diria Monteiro Lobato.
O grito de Lobato (que virou até título de chanchada da Atlântida, com Violeta Ferraz chanchando mais do que todos) deve ser ouvido hoje como um grão de sal. Na verdade, dadas as dimensões da encrenca, como uma camada quase intransponível de sal. A maldição do petróleo é uma evidência histórica. Com a exceção da Noruega, os países que têm muito petróleo terminam escravos do ouro negro. A compreensível admissão de que petróleo é produto estratégico leva à centralização de sua exploração e comercialização. O que propicia o crescimento de tiranias vitalícias e/ou hereditárias, e a psicologia coletiva da supermonocultura. Oligarquias oficiais enriquecem, e povos inteiros vivem na pobreza e na adoração compulsória de seus chefes. Os EUA têm ojeriza ao comando público (estatal) do que quer que seja (exceto, claro, a máquina de guerra). Basta lembrar que, sendo o país mais rico do mundo, eles resistem ainda hoje a ter algo que se assemelhe a saúde pública. Assim, o petróleo lá (coisa em que eles vão em breve se tornar autossuficientes) é de extração privada e ponto final.
O Brasil felizmente não emburacou na onda ultraestatista em relação ao petróleo. Lula manteve muito do que foi definido por FH. Ninguém foi contaminado pelo privatismo histérico norte-americano, mas tampouco seguimos o modelo de Chávez. Vários fatores fizeram com que tocássemos a autossuficiência. Agora a Petrobras descobre que tem sérios problemas. Que o maior deles não venha a ser um golpe mortal no Rio e na harmonia da Federação. Senadores e deputados jogarem a maioria dos estados e municípios contra o Rio e o Espírito Santo é desumano. Contamos com a presidente, com o Supremo e com o bom senso. Que “o petróleo é nosso” possa ser, por agora, um brado legítimo dos fluminenses e dos capixabas.
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