domingo, 23 de março de 2014

ALÉM DO RIO, NADA

Artigo do confrade Aluysio Abreu Barbosa, publicado na edição impressa da Folha da Manhã de hoje a aqui, no Blog Opiniões:

Artigo do domingo — Além do rio, nada


Foz do Paraíba
Foz do rio Paraíba do Sul


Charles Frederick Hartt
Charles Frederick Hartt
O primeiro a estudar a formação da planície goitacá a partir da ação do rio Paraíba do Sul foi o geólogo canadense Charles Frederick Hartt (1840/78). Ele veio ao Brasil integrando a famosa expedição Thayer, entre 1864 e 1865, comandada por seu mentor, o zoólogo suíço Louis Agassiz (1807/73), defensor científico do Criacionismo e grande opositor do naturalista inglês Charles Darwin (1809/82) e sua Teoria da Evolução.
De qualquer maneira, foi nas pesquisas de Hartt reunidas em “Geologia e Geografia Física do Brasil” (1870), nas quais o avanço do mar em Atafona é pela primeira vez descrito, que nosso Euclides da Cunha (1866/1909) se baseou para escrever “A Terra”. Este apanhado da formação geológica do sertão brasileiro é o capítulo inicial de “Os Sertões” (1902) e principal motivo para a maioria abandonar a leitura, ainda no começo, deste necessário clássico da literatura nacional.
Alberto Ribeiro Lamego
Alberto Ribeiro Lamego
Dentro desta mesma literatura, talvez maior herdeiro de Euclides na mestiçagem tanto entre ciência e romance, como do homem com seu meio, o geólogo campista Alberto Ribeiro Lamego (1896/1985) externou em “O Homem e o Brejo” (1945) grande parte das suas teses sobre o protagonismo do rio Paraíba na formação da planície. Mais recentemente, os brasileiros Kenitiro Suguio, Jean-Marie Flexor e José M. L. Dominguez se uniram ao francês Louis Martin, para comporem a oito mãos “Geologia do Quaternário Costeiro do Litoral Norte do Rio de Janeiro e Espírito Santo” (1997). Nela os renomados geólogos contemporâneos reviram grande parte das teses de Lamego, mas permaneceram endossando o papel quase monoteísta do Paraíba na gênese da planície em que deságua.
Desde quando a ciência ainda achava existir para afirmar a criação divina, até nossos dias, apesar das revisões naturais que o tempo impõe às teorias, ninguém que tenha se dedicado a estudar esta planície e o rio que a corta, foi capaz de afirmar que a primeira existiria, não fosse a ação direta do segundo. Os mesmos campistas, sanjoanenses e são franciscanos que adoram reclamar da cor marrom das suas praias, talvez nunca tenham percebido: o barro que lhes escurece o mar é o mesmo que, carreado pelo Paraíba ao longo dos milênios, formou o próprio chão sobre o qual caminham suas vidas, desde quando aprenderam a pisar.
Sem o rio, o mar provavelmente seria azul, mas avançaria sobre nossas cabeças até reencontrar a Serra do Imbé.
Reservatórios secos do sistema Cantareira
Reservatórios secos do sistema Cantareira
Ameaçado pelo projeto de desvio das suas águas na represa de Jaguari, para atender à Grande São Paulo no sistema de Cantareira, o Paraíba conseguiu confluir em sua defesa lideranças fluminenses tão impermeáveis entre si quanto o governador Sérgio Cabral (PMDB) e o deputado federal Anthony Garotinho (PR). Bem verdade que o governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB) pareceu não se importar muito com a reação de ambos, chegando a afirmar depois que poderia fazer a obra, estimada em R$ 500 milhões e num prazo de 18 meses, mesmo com a discordância do Estado do Rio.
Procurador Eduardo Santos de Oliveira
Procurador Eduardo Santos de Oliveira
E a revelação na sexta, por parte do procurador da República em Campos, Eduardo Santos de Oliveira, de que o governo estadual de São Paulo estudava desde 2008 o desvio do Paraíba para atender sua zona metropolitana em períodos prolongados de estiagem, tendo depois chegado a informar oficialmente ao Ministério Público Federal goitacá, em 2011, que não tinha nenhum projeto de transposição do rio federal, apresentado agora por Alckmin à presidente Dilma Rousseff (PT), reforça a impressão de que os paulistas estão pagando para ver.
Para um Estado que ostenta o maior PIB e o maior colégio eleitoral do Brasil, chamar transposição de “captação”, pode ser até além de um mero “jogo semântico”, como bem definiu Eduardo.
Talvez com o beneplácito do governo federal em ano de eleição, aquela que vence quem receber mais afluentes em voto e dinheiro, oxalá o jogo não seja “ou dá, ou desce”. Tanto pior na São Paulo que, apesar de berço petista, é dominada pelo PSDB de Alckmin. E diante dos 15 milhões de paulistas atendidos pelo sistema Cantareira, como ficar à míngua na simpatia enquanto se hidrata seu principal adversário nas urnas?
Barragem de Santa Cecília, que desvia 2/3 da água do Paraíba para atender o Grande Rio no sistema Guandu
Barragem de Santa Cecília, que desvia 2/3 da água do Paraíba para atender ao Grande Rio no sistema Guandu
Na dúvida, até que haja um estudo técnico e apolítico de toda a Bacia do Paraíba, nos três Estados que a integram, só a insanidade aconselha mais um sangramento em seu curso de água doce, que já registrou língua salina quilômetros adentro, à altura de Barcelos. Já na divisa dos municípios de Campos e São João da Barra, é a vanguarda do avanço do mar em Atafona, intensificado a partir dos anos 1950, quando outro desvio fluvial foi feito, para atender outra região metropolitana.
A partir da barragem de Santa Cecília, em Guandu, que até hoje serve de água o Grande Rio, já se perdeu a conta de quantas casas e ruas hoje só servem aos peixes, na foz de um rio em queda de braço com o Atlântico e tendões cortados pelo homem.
Com  1.137 km de extensão e 56.500 km2 de bacia, o Paraíba é um grande rio. Acima do Equador, com 2.320 km de comprimento e bacia de 632.000 km2, o rio Colorado é muito maior. Escultor do famoso Grand Canyon, como o Paraíba da planície goitacá, o Colorado foi alvo de várias intervenções para captação d’água e geração de energia elétrica, entre elas a Barragem Hoover, erguida nos anos 1930 e tida ainda hoje como a grande obra de engenharia dos EUA.
Foz do rio Colorado, completamente seca em boa parte do ano
Foz do rio Colorado, completamente seca em boa parte do ano
Durante muito tempo, o modelo de transposição de águas adotado no Colorado para irrigação de terras secas foi considerado exemplo a ser seguido, inclusive no rio São Francisco, no Nordeste brasileiro. Mas nem seu gigantismo bastou para saciar a sede humana e hoje o rio está morrendo. Durante boa parte do ano, o Colorado sequer consegue mais atingir sua foz, no Golfo do México.
Se o mesmo acontecer aqui, será um desastre maior do que a perda dos royalties, já que o mal causado pela consequente salinização de toda a Baixada do Paraíba, inviabilizando a agropecuária e as indústrias sucroalcooleira e cerâmica, certamente durará mais do que as jazidas de petróleo no fundo do mesmo mar que, sem a oposição do rio, prevalecerá outra vez sua poderosa ação sobre a planície. Ademais, a captação d’água em diversos municípios teria que ser feita a partir da dessalinização, ou de fontes alternativas também já degradadas pela ação humana, como Lagoa de Cima.
Pela pena do seu heterônimo e mestre Alberto Caeiro, o poeta português Fernando Pessoa (1888/1935) escreveu:

“Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia”

Quem, por sensibilidade e gratidão, ainda não pensou no que há para além do Paraíba, que o faça por necessidade. Para quem habita a planície goitacá, além do rio da aldeia, não há nada.

Publicado hoje na edição impressa da Folha.

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