A decisão do ministro Gilmar Mendes, que mandou soltar o ex-governador Anthony Garotinho, na íntegra. Ele deve deixar o presídio de Bangu 8 na tarde desta quinta-feira, de acordo com informação postada agora há pouco no Blog do Garotinho (
aqui). Detalhe: a decisão de Gilmar foi tomada no primeiro dia do recesso judiciário porque ele é presidente da Corte e responsável pelo plantão e revoga o decreto de prisão preventiva, ou seja, Garotinho não precisará usar tornozeleira eletrônica como a mulher, Rosinha, que teve sua prisão preventiva convertida em medidas cautelares pelo TRE.
A decisão:
RECURSO ORDINÁRIO NO HABEAS CORPUS Nº 0600186-44.2017.6.19.0000 – CLASSE 1344 – CAMPOS DOS
GOYTACAZES – RIO DE JANEIRO
Relator: Ministro Jorge Mussi
Paciente: Anthony William Garotinho Matheus de Oliveira
Advogados: Fernando Augusto
Henriques Fernandes e outros
DECISÃO
1. Trata-se de recurso em habeas corpus, com pedido de medida liminar, interposto do acórdão do
Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro exarado nos autos do HC nº
0600186-44, que manteve a prisão preventiva do ora paciente nos autos da Ação
Penal nº 12-81/RJ.
Nas razões deste pedido de medida
liminar, o recorrente
narra:
a) “está
fundamentado em duas premissas largamente explicitadas no bojo do Recurso
Ordinário, quais sejam: (i) a flagrante incompetência da Justiça Eleitoral para
processar e julgar o feito originário, com pedido de suspensão imediata da ação
penal; e (ii) a completa ilegalidade e desnecessidade da prisão preventiva
imposta ao Recorrente, cujo decreto de prisão já foi inclusive reconhecido como
ilegal pelo Exmo. Ministro Dias Toffoli, nos autos do HC 151.403, do STF, em
favor de corréu” (fl. 1);
b) na linha
do voto por mim proferido nos autos do REspe nº 75-08.2016.6.24.0000, pelo
trancamento da ação penal, o delito previsto no art. 350 do Código Eleitoral
tem caráter subsidiário, funcionando como um “soldado de reserva”, devendo ser
aplicado apenas quando ausente norma mais grave, o que não ocorreu na espécie,
já que o impetrante está respondendo por crimes mais graves (arts. 154 e 317 do
CP), o que afasta a competência desta especializada;
c) tanto o
decreto de prisão originariamente coator quanto o acórdão recorrido deixaram de
citar a possibilidade de aplicação das medidas alternativas do art. 319 do CPP,
de modo que se apresentam contrários à ordem legal estabelecida;
d) a
fundamentação da prisão está calcada em um fato claramente atípico,
consubstanciado em falsa acusação de extorsão, já que “sequer o próprio
colaborador André Luis afirma ter sido ameaçado” (fl. 4);
e) demais
disso, “este ato teria sido supostamente
cometido por terceiro, e na prática
não constitui qualquer ameaça, segundo o próprio depoimento que fundamenta a
imputação [...], [de modo que consiste em] uma clara tentativa de distorção da
realidade, tentando fazer com que o Poder Judiciário balize uma narrativa
criada, que sobremaneira vai de encontro
aos próprios depoimentos que motivaram a prisão preventiva” (fl. 4 – grifos
no original);
f) a
fundamentação da prisão preventiva não promove a individualização da alegada
participação de todos os réus, limitando-se a consignar que “em uma [suposta]
organização criminosa, não é possível separar condutas entre os integrantes”
(fl. 4);
g) tal ato
coator já foi objeto de apreciação pelo STF, nos autos do HC 151403, no qual se
“reconheceu a arbitrariedade e a desfundamentação do decreto prisional, e
concedeu medida liminar para revogar a prisão preventiva do corréu Fabiano
Rosas Alonso, em superação à Súmula nº 691 do Supremo Tribunal” (fls. 4-5).
No tocante ao
periculum in mora, afirma consistir na
proximidade da audiência de instrução e julgamento do feito originário,
designada para 10.1.2018, “a despeito de prazo aberto para Resposta à Acusação
de alguns réus, pelo menos, até o dia 17 de janeiro, justificando-se por
completo a suspensão da referida ação penal, com cessação dos efeitos da
decisão que decretou as prisões preventivas de todos os réus” (fl. 3).
Requer, por
fim, “a urgente apreciação do pedido
liminar do Recurso Ordinário, para, em caráter de subsidiariedade: (i) suspender a ação penal nº
12-81.2017.6.19.0098, em trâmite perante a 98ª Zona Eleitoral de Campos dos
Goytacazes/RJ, em razão da flagrante incompetência da Justiça Eleitoral,
suspendendo-se, também, o efeito da decisão que, de maneira absolutamente
desfundamentada, decretou a prisão preventiva de todos os réus; ou (ii) revogar a prisão preventiva do
Recorrente, consubstanciado em todos os fatos e fundamentos expostos, tanto no
bojo do Recurso quanto na presente petição, e em consonância com a liminar do
Exmo. Ministro Dias Toffoli nos autos do HC 151.403 do STF, onde claramente
reconheceu a ilegalidade do decreto prisional originário, que ordenou a
segregação de todos os réus” (fl. 5 – grifos no original).
Decido.
2. Neste
juízo provisório, não verifico a presença dos requisitos autorizadores da
prisão preventiva, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal. Quanto à
garantia da ordem pública, o
Regional consigna:
Cabe
aqui trazer à colação trecho da decisão ora impugnada a qual se refere aos
depoimentos prestados pela testemunha Ricardo Saud:
“Relata
a testemunha que, diante da insistência do réu Antônio Carlos Rodrigues e do
problema causado pelo réu Anthony Garotinho, ficou estabelecido que a JBS faria
uma doação via “caixa 2” para o segundo no valor de R$ 3.000.000,00 (três
milhões de reais), e que Fabiano Alonso, genro do réu Antônio Rodrigues,
ficaria responsável por operacionalizar o repasse da propina, mediante envio de
uma nota fiscal fria para uma empresa de acordo com o que foi acordado entre
Fabiano Alonso e o grupo da ORCRIM, liderado pelo réu Anthony Garotinho.”
A
decisão faz minuciosa referência à prova documental, que imputa ao réu, ora
paciente, graves condutas. Senão vejamos:
“Não
bastassem os numerosos e esclarecedores depoimentos, os fatos narrados pelo
colaborador e demais testemunhas são também corroborados por farta
documentação, podendo-se citar os documentos de fl. 73/94, referentes a e-mails
de negociações entre a JBS e a empresa OceanLink para formalização do contrato
simulado a fim de favorecer o réu Anthony Garotinho com o depósito da quantia
em torno de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais) para sua campanha eleitoral
ao Governo do Estado do Rio de Janeiro. Ressalto ainda a nota fiscal relativa
ao contrato e seu pagamento, constante de fl. 40, bem como o referido contrato
ideologicamente falso, constante de fls. 41/51.”
Nesse
ponto, cabe trazer à colação trecho da decisão ora impugnada a qual se refere
aos depoimentos prestados pelo colaborador André Luiz antes de firmar o termo
de colaboração:
“À fl.
208, retira-se o seguinte trecho, verbis: ‘que segundo Thiago Godoy, o
reinquirido devia pagamento de contribuições por faturas que haviam sido pagas
a Working; que essas contribuições funcionavam como condição para o recebimento
de créditos contratuais com a PMCG; que Thiago Godoy disse que para liberar os
pagamentos da Working, o reinquirido, deveria pagar cerca de R$ 900.000,00
(novecentos mil reais); que Thiago Godoy disse que ‘o chefe’ precisava desses
recursos para ‘dar seguimento ao projeto político’; que ‘o chefe’ referido por
Thiago Godoy é Anthony Garotinho. Ressalte-se que o colaborador André Luiz
também é proprietário da empresa Working acima referida”.
“Já às
fl. 210, o colaborador esclarece que por conta do acordado com os réus Thiago
Godoy e Antônio Carlos Ribeiro, vulgo Toninho, a Prefeitura de Campos pagou a
Working o valor de R$ 2.372.445,48 (dois milhões, trezentos e setenta e dois
mil, quatrocentos e quarenta e cinco reais e quarenta e oito centavos), em três
prestações e que para cumprir sua parte no acordo, sacou R$ 500.000,00
(quinhentos mil reais) em duas parcelas que foram entregues diretamente a
Toninho, em frente a sua residência e dentro do carro daquele. Como já
salientei acima, as declarações externadas pelo colaborador em três
oportunidades foram corroboradas por vasta prova documental e oral, e diante da
robustez do contexto probatório, bem como preenchidos todos os requisitos da
Lei nº 12.850/13, foi prolatada a decisão de fl. 306/309 homologando o acordo
de colaboração premiada adunado aos autos às fl. 248/252.”
Como se
observa, nesta primeira parte da decisão, o TRE simplesmente relata o modus operandi dos alegados crimes
praticados (art. 350 do Código Eleitoral – organização criminosa, corrupção
passiva, extorsão e lavagem de dinheiro), sem
indicar, concretamente, nenhuma conduta atual do paciente que revele,
minimamente, a tentativa de afrontar a garantia da ordem pública ou econômica, a
conveniência da instrução criminal ou assegurar a aplicação da lei penal.
Na verdade, o
decreto de prisão preventiva, assim como o acórdão regional, busca o que
ocorrido no passado (eleições de 2014) para, genericamente, concluir que o
paciente em liberdade poderá praticar novos crimes, o que, a meu ver, trata-se
de ilação incompatível com a regra constitucional da liberdade de ir e vir de
cada cidadão, em decorrência lógica da presunção de inocência. Na sempre
preciosa lição do Ministro Sepúlveda Pertence, a “necessidade da prisão
preventiva há de partir de fatos concretos, não de temores ou suposições
abstratas. Inidoneidade, no caso, da motivação da necessidade da prisão
preventiva, que, despida de qualquer base empírica e concreta, busca amparar-se
em juízos subjetivos de valor acerca do poder de intimidação de um dos acusados
e menções difusas a antecedentes de violência, que nenhum deles se identifica” (RHC 83179/PE, julgado em 1º.7.2003 – grifos nossos).
A
propósito, o Ministro Dias Toffoli, ao apreciar o pedido de medida liminar nos
autos do HC 151403/RJ, que envolve corréu da mesma ação penal, concluiu pela
superação da Súmula nº 691/STF e assentou:
Como visto o decreto prisional foi
embasado na garantia da ordem pública e da instrução criminal, em face da
necessidade se interromper a atividade criminosa e de se obstar eventual
interferência na instrução do processo.
Esses fundamentos, neste primeiro
exame, não podem subsistir em relação ao paciente.
Não se apega a reprovabilidade das
condutas supostamente a jurisprudência consolidada da Corte assentou que a
idoneidade do decreto de custódia cautelar reclama fundamentação com lastro em
elementos concretos para justificá-los.
(...)
Destaque-se,
ainda, que por mais graves e reprováveis que sejam as condutas supostamente
perpetradas, isso não justifica, por si só, a decretação da prisão cautelar
(v.g. HC nº 127.186/PR, Segunda Turma, Relator o Ministro Teori Zavaski, DJe de
3//8/15).
Na
espécie, o decreto prisional, no tocante à garantia da ordem pública, em face
da necessidade de se interromper a atividade criminosa, não indicou elementos
concretos e individualizados em relação ao paciente, aptos a demonstrar a
necessidade de medida extrema, já que os fatos a ele imputados como visto,
remontam ao ano de 2014, havendo, portanto, considerável espaço de tempo entre
a sua decretação (17/11/17) e a intercorrência apontada. (Grifos nossos)
No que tange
à garantia da instrução criminal,
o Regional afirma:
A
decisão proferida pelo magistrado da 98º Zona Eleitoral aborda precisamente
este aspecto. Senão vejamos:
“Com
suas atividades contínuas, os réus demonstram e acreditam que seus poderes
estão acima da lei e da ordem, restando evidente que os mesmos exercem poder
intimidativo sobre pessoas comuns e empresários, especialmente aquelas que
estão envolvidas nos fatos ora objeto de cognição e que estão demonstrados no
inquérito policial federal, razão pela qual é preciso resguardar a integridade
física e mental do colaborador e demais testemunhas, assim como se faz
imprescindível garantir a ordem pública, extirpando-se as práticas criminosas
da ORCRIM, evitando-se a continuidade das atividades ilícitas com vistas a
fraudar o processo seletivo eleitoral com o uso do inegável poder econômico
obtido com recursos ilícitos.”
(...)
Em
remate, para que não paire dúvidas sobre o efetivo dano potencial à instrução
criminal decorrente de práticas hostis empreendidas pelo grupo criminoso,
destaco excerto da decisão que descreve a coação sofrida pelo colaborador:
“Convém
salientar que o colaborador André Luiz vem sendo constantemente assediado pelo
réu Suledil Bernardino com intuito de sondar o colaborador e pressioná-lo a fim
de que os fatos criminosos não viessem à tona. Neste ponto transcrevo o
seguinte trecho do depoimento prestado pelo colaborador e constante de fl. 218,
in verbis: ‘que essa intenção de Suledil Bernardinio ficou bastante claro para
o reinquirido pela maneira como ele conduziu o diálogo, uma vez que
frequentemente perguntava ao reinquirido sobre ‘como estava’, ‘se estava tudo
bem’, ‘sobre como estava sua relação com o Governo atual’, ‘se estava tranquilo’,
dentre outros questionamentos, feitos com o nítido propósito de perquerir o
estado anímico e emocional do reinquirido.’”
A suposta
ameaça teria como objetivo impedir a colaboração de André Luiz. Contudo, além
de a colaboração ter sido realizada, não há menção ao nome do paciente na
tentativa de impedir a instrução criminal. Some-se a isso a circunstância de
que o colaborador André Luiz afirmou que não se sentiu ameaçado com a pergunta “se
a família dele está bem”. Não há, portanto,
indicação de nenhum ato concreto e atual praticado pelo paciente com o intuito
de fragilizar a instrução criminal.
De fato, a prisão preventiva, enquanto
mitigação da regra da presunção de inocência, exige fundamentação idônea, respaldada
em motivos cautelares concretamente verificados e contemporâneos ao ato, demonstrando
a inevitável necessidade de ser utilizada em detrimento de outras medidas
cautelares diversas da prisão.
Conforme nos
ensina o Ministro Celso de Mello, “a motivação há de ser própria, inerente
e contemporânea à decisão que decreta (ou que mantém) o ato excepcional
de privação cautelar da liberdade, pois a ausência ou a deficiência de
fundamentação não podem ser supridas ‘a posteriori’” (HC 98821/CE, Segunda Turma, julgado
em 9.3.2010 – grifos nossos).
Nesse
sentido, a decisão do Ministro Dias Toffoli no Supremo Tribunal Federal em
relação ao corréu.
Por
outro lado, neste juízo cautelar, tenho afirmado que a suposta arrecadação de
recurso e gastos de campanha, não informados em prestação de contas de
candidato, pode não encontrar subsunção no art. 350 do Código Eleitoral. De
fato, referido tipo exige dolo específico, ou seja, a deliberada intenção de
falsificar o conteúdo de documento público ou particular a respeito de algum
fato relevante do ponto de vista jurídico, com aptidão de produzir efeito eleitoral
(cf. o REspe nº 2675-60/RS).
Como se
sabe, a prestação de contas consubstancia um procedimento previsto em lei para
conferir maior transparência e lisura às eleições. Importante elemento
teleológico permeia esse procedimento: o de impedir ou evitar o abuso do poder
econômico, de modo a assegurar a paridade entre os candidatos concorrentes e
resguardar, em última análise, a liberdade do sufrágio.
Por
outro lado, o candidato que arrecada recursos de campanha, provenientes seja de
caixa dois, seja de propina, seja originário de algum outro crime, ou seja
simplesmente de doador que prefere manter-se oculto, não os leva a registro na prestação de contas justamente para
ocultar violação de regra penal anterior, para a qual tenha ou não concorrido.
Dessa
forma, nessa situação específica, de eventual abuso do poder econômico durante
campanha eleitoral, em que pode ser justaposto algum crime (fiscal, de lavagem
de dinheiro ou de corrupção), não deve ser resolvida pela singela aplicação do
art. 350 do Código Eleitoral, sem maiores indagações, como se fosse verdadeira
panaceia.
Com
efeito, na hipótese de omissão de recursos em procedimento de prestação de
contas, a conduta normalmente está a revelar mero exaurimento de crime
anterior, do qual a eventual participação do candidato deveria ser investigada
havendo indícios de autoria. É dizer: referida conduta omissiva seria então um post factum impunível, ou comportamento
a ser analisado sob a ótica do princípio da subsidiariedade, razão pela qual o
art. 350 do Código Eleitoral funcionaria como “soldado de reserva”, ou seja, somente
teria aplicação nas hipóteses de não ocorrência de um delito mais grave.
No entanto, a complexidade do tema não se
coaduna com via sumária da liminar em habeas
corpus, mas deve ser detidamente analisada pelo juízo competente no
julgamento de mérito da ação penal, mormente quando se verifica que, no caso
concreto, a própria denúncia justamente narra crimes mais graves praticados de
forma antecedente.
3. Ante
o exposto, defiro o pedido de medida
liminar para suspender o decreto de prisão preventiva expedido contra o ora
paciente nos autos da Ação Penal nº 12-81/RJ, que tramita na 98ª Zona Eleitoral
de Campos dos Goytacazes/RJ.
Comunique-se e cumpra-se,
com urgência.
Publique-se.
Brasília,
20 de dezembro de 2017.
Ministro
GILMAR MENDES
Presidente