Artigo de Eugênio Bucci publicado no último domingo no Caderno Aliás, do Estado de S.Paulo (
aqui):
William Bonner para presidente?
A sequência de entrevistas com os candidatos à Presidência da República no Jornal Nacional, ao longo da semana que passou, revelou pouco sobre os meandros das negociatas políticas que cimentam com barro débil as alianças eleitorais e corroem com ácido mortal a credibilidade dos que ainda têm alguma. Dilma, Marina, Serra e Plínio saíram das entrevistas mais ou menos como entraram. Sangraram pouco, sorriram outro tanto, fingiram estar à vontade. Já William Bonner, o condutor do programa, este sim se saiu bem. Não porque tenha sido elogiado pelas multidões; ele ouviu reclamações, isto sim, dos cabos eleitorais de uns e outros. Mas saiu reforçado, legitimado, pela aquiescência quase reverente dos seus entrevistados, que foram ao JN como quem rende homenagens à instância máxima da opinião pública no Brasil.
Nisso, não estavam de todo errados. Se não mostraram nenhum fato inédito e bombástico sobre a biografia dos concorrentes, as entrevistas explicitaram, uma vez mais, a centralidade que o mais antigo telejornal em exibição no Brasil ainda ocupa no debate político que a nação é capaz de entabular.
Num tempo que festeja o livro digital, celebra as redes sociais e reverencia o celular como prodígios tecnológicos e como realização de todas as utopias democráticas, a televisão, a velha, a manjada, a previsível televisão de todo santo dia ainda é o centro do espaço público nacional. Não tem jeito. E se a televisão é o centro de gravidade, a Rede Globo ainda é o centro do centro. Quanto ao JN, ele é o centro do centro do centro. Gostem ou desgostem, é assim.
Há muitos anos, uma marca de cigarro fazia sua propaganda evocando paisagens que seriam o retrato de sua "terra natal". Pois então: o torrão em que nascera aquele cigarro era um ambiente de descampados míticos e selvagens, com jeito de Velho Oeste americano, mas tinha a particularidade conveniente de não ter localização definida. "É lá que os homens se encontram", entoava o locutor dos comerciais. Os jornalistas faziam piada: "Mas ninguém sabe onde fica". Hoje, o estúdio do JN, com seu cenário de torre de comando da nave Enterprise, de Jornada nas Estrelas, numa estética de ficção científica dos anos 70, de um futurismo retrô, lembra um pouco a Terra de Marlboro.
A ambientação, sem janelas nem plantas, situa-se num lugar fora dos lugares geográficos. Assim como o sotaque dos apresentadores, que soa como um híbrido sem origem. O estúdio do JN pode muito bem ter seu endereço no Rio, na Mooca ou em São Joaquim da Barra que não faz diferença. Ele não tem raízes no chão. Paira como um zepelim prateado no céu da Pátria. Mas - atenção para isso - é lá que os homens se encontram. Melhor: é lá que os candidatos à Presidência se revezam e dão explicações para William Bonner, o porta-voz do eleitorado.
A TV. Ainda a TV. Nada como a TV. E, no meio dela, William Bonner e Fátima Bernardes. Em junho passado, a Secom divulgou os resultados de uma pesquisa - que encomendou ao Instituto de Pesquisa Meta - sobre os hábitos de informação dos brasileiros. Foi uma enquete ambiciosa, que entrevistou 12 mil pessoas em 924 pontos do País, que, entre outras coisas, revelou que para nada menos de 73,6% dos entrevistados, os telejornais são o principal veículo informativo sobre atos do governo federal. Para 33,7%, Bonner é o apresentador mais confiável. Depois dele, vêm Fátima Bernardes, com 18,15, e Boris Casoy, da Bandeirantes, com 4%.
Os ressentidos resmungam, dizendo que essa liderança é produto da alienação do povo ou dos "monopólios da mídia". Estão errados. Sem dúvida, existe concentração de propriedade na radiodifusão brasileira. No entanto, a razão do sucesso do JN não tem mais a ver com isso. Esse programa, que atingiu o ápice do chapa-branquismo durante a ditadura militar e se manteve assim na segunda metade dos anos 80, conseguiu descrever uma impressionante trajetória de reposicionamento de imagem (e de atitude). Para a largada da travessia, o conforto do monopólio contribuiu. Para o resto do percurso, não. Ao longo do caminho, o JN ganhou objetividade e credibilidade. Conquistou a percepção do público de que sabe ser informativo e equilibrado. Tropeçou - e tropeça - em pedregulhos e ribanceiras, mas caminhou na direção de um distanciamento crítico que jamais teve em relação ao poder. Hoje, apresenta ao País um jornalismo laico - precioso num período em que a TV se entrega cada vez mais ao fanatismo religioso e partidário.
Uma das provas desses méritos veio nessa semana, com o reconhecimento que Bonner recebeu dos três principais candidatos. A deferência com que todos responderam ao que lhes era perguntado atestou a legitimidade do telejornal. Apenas Plínio de Arruda Sampaio (PSOL) criticou o programa. Não foi subserviente nem cínico, mas criticou sem razão. Disse que seu tempo de entrevista (3 minutos) era exíguo, enquanto Marina, Dilma e Serra tiveram, cada um, 12 minutos. Na opinião dele, foi uma discriminação. O programa reagiu corretamente: não apenas exibiu o protesto como explicou ao telespectador seu critério: os candidatos teriam tempo proporcional à pontuação de cada um nas pesquisas eleitorais. Plínio, com cerca de 1%, não poderia receber o mesmo tempo que um candidato com 30%. O critério é justo.
Na semana que passou, os entrevistadores do JN (William Bonner e Fátima Bernardes) souberam apertar Dilma Rousseff sobre o apoio do PT ao PMDB dos Sarneys no Maranhão, e souberam exigir esclarecimentos de Serra sobre sua aliança com o PTB, cujo presidente foi cassado no escândalo do mensalão. Não militaram para proteger um lado ou outro. Não bajularam, mas também não desrespeitaram ninguém.
Até agora, o momento alto da campanha aconteceu no Jornal Nacional - mais do que no debate na Bandeirantes. Só na Grande São Paulo, 5,9 milhões de telespectadores viram o que Dilma e Serra falaram. O JN se saiu bem e isso é bom para a democracia. Que ele tenha sido tão adulado pelos candidatos - à exceção de Plínio - talvez não seja tão bom. Às vezes, os entrevistados respondiam a William Bonner como se fossem alienígenas de um planeta em apuros mendigando pela simpatia do Capitão Kirk, da Enterprise. Ao menos por enquanto, o nome de William Bonner não está na cédula eleitoral.
*Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e autor de 'Videologias' (Boitempo)