Algumas opiniões sobre o engajamento das pessoas na campanha Je suis Charlie, para demonstrar seu apoio à defesa ilimitada pela liberdade de expressão a partir do assassinato de jornalistas e cartunistas do jornal satírico francês Charlie Hebdo e outras que, apesar de igualmente rechaçarem a violência, mas não são Charlie. Je ne suis pas Charlie.
Ser ou não ser?
Eu sou.
Abaixo alguns bons textos e argumentos do cartunista Laert do teólogo Leonardo Boff e dos jornalistas Eugênio Bucci e Gianni Carta. E veja também links para as opiniões de Luiz Fernando Veríssimo, Dorrit Harazim, Demétrio Magnoli, Leonardo Padura, José Roberto de Toledo, Alberto Dinnes...
Laerte: no Brasil Charlie Hebdo não existiria
09/01/15 17:48
“Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório”
De Paris
Slogans políticos são importantes porque definem as causas pela quais lutamos. Quem ocupa Wall Street quer acabar com a arrogância dos banqueiros, nesse mundo globalizante no qual eles são protegidos enquanto o povo paga pela sua ganância e impunidade. “Indignados”, por sua vez, protestam contra a austeridade imposta pela chanceler alemã Angela Merkel, para citar um exemplo.
No domingo 11, mais de 3 milhões de franceses e cidadãos mundo afora marcharam contra o terrorismo e pela liberdade de imprensa. Políticos de todas inclinações ideológicas e cidadãos comuns de todas as fés mostraram aos radicais islamistas que não se dobram diante do terrorismo.
Tratou-se de um ato necessário para reforçar os valores desta República, onde os direitos do homem são primordiais.
Como tem se dito por aqui, a França viveu seu 11 de setembro. Em três dias de ataques terroristas, 17 pessoas inocentes perderam a vida. Três terroristas foram mortos pela polícia, e dois continuavam soltos nesta segunda-feira 12, inclusive a mulher de um deles.
Tudo começou na quarta-feira 8, quando os irmãos Chérif e Said Kouachi, de 32 e 34 anos, invadiram o semanário satírico Charlie Hebdo. Deixaram 10 mortos, entre eles o editor da publicação, Charb, de 47 anos, e mais quatro dos melhores cartunistas do país, Wolinski, Cabu, Honoré e Tignous.
Fazia parte da célula terrorista outro homem, Amedy Coualiby. Em um ataque contra um supermercado kosher matou quatro reféns. Coualiby teria sido responsável pela morte de uma policial no sul de Paris. E teria ferido um homem a praticar jogging em um parque.
A França continuará em estado de alerta máximo por semanas.
O presidente François Hollande esteve à altura: exprimiu-se com objetividade, com dignidade e no tom apropriado. Fez mais: aglutinou 40 estadistas de peso, entre eles o presidente da União Europeia, Donald Tusk, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas, o premier britânico David Cameron, Angela Merkel e o premier israelense Benjamin Netanyahu.
A marcha parisiense reuniu mais de 1,5 milhão de cidadãos. Desfilaram importantes símbolos da República: a tricolor, Joanna D’Arc, e Marianne, a simbólica mãe da nação que encarna os valores “Égalité, Liberté et Fraternité”.
Buquês de flores e velas foram colocados nos lugares onde ocorreram atentados, ou onde caíram vítimas. Em uníssono, o povo entoou a revolucionária Marselhesa, hino nacional.
Lia-se em camisas, bandeiras, cartazes e faixas: “Je suis Charlie! Nous sommes Charlie!” As caricaturas do Charlie Hebdo eram alçadas para as câmaras de televisão. Numerosas pessoas escreveram em suas mãos ou testas um grande “C”, para Charlie.
Pela enésima vez, o ministro do Interior Bernard Cazeneuve explicou o motivo do “C”: “Esse é um protesto também para defender a liberdade de imprensa”.
Entenda-se: os dois irmãos Kouachi não são diferentes de Coualiby, responsável pelas mortes dos quatro reféns no supermercado kosher, e provavelmente da policial. Mereceram o fim que tiveram. Como todos extremistas islamistas, os dois irmãos eram fanáticos do apocalipse. Cometeram, a sangue frio, armados como soldados, uma carnificina ao tirar a vida de jornalistas inocentes e policiais a simbolizar a França no seio de Paris.
No entanto, o ataque contra o semanário Charlie Hebdo foi um ato terrorista, não contra a liberdade de imprensa. Se o Le Monde tivesse sido o alvo, teria sido um ataque contra a liberdade de imprensa.
Jamais teria um editorial do vespertino defendido a tese de que o profeta é um jihadista. E o Le Monde não publicaria uma charge de Maomé com uma bomba no turbante, como o fez o semanário Charlie Hebdo. A liberdade de imprensa conhece seus limites, especialmente quando o tema envolve religião.
Charlie Hebdo é um semanário satírico famoso pelas polêmicas contra as três religiões monoteístas.
Em novembro de 2011, um coquetel molotov havia provocado um incêndio e destruído a velha redação do semanário satírico. À época, o ataque terrorista tinha elos com o fato de o semanário ter sido intitulado Charia Hebdo (Semanário da Lei Islâmica). Na capa, uma caricatura de Maomé, convidado para ser o redator chefe da edição. Dizia a charge: “100 chicotadas para aqueles que não morrerem de rir”.
Charb recebeu várias ameaças de morte. Desde então o diretor do semanário vivia sob proteção policial. Idem a nova redação do jornal.
É claro que Charb e os jornalistas/caricaturistas do semanário satírico não mereciam ser vítimas dessa barbárie.
No entanto, aceitaram o risco.
Outro a aceitar o risco foi o filósofo Robert Redeker. Em 2006, escreveu um artigo criticando a religião muçulmana em um diário que representa a imprensa “livre”, o Le Figaro. A Al-Qaeda colocou a prêmio cabeça de Redeker, conselheiro do jornal acadêmico Les Temps Modernes, fundado por Jean-Paul Sartre. Desde então, Redeker, entrevistado várias vezes por esta CartaCapital, vive sob proteção policial em endereços desconhecidos.
Em suma, não houve ataque contra o Le Figaro, visto que o artigo era assinado por Redeker. O diário se desolidarizou de Redeker.
Na quarta-feira 14, um milhão de exemplares de Charlie Hebdo serão vendidos nos quiosques, em vez dos habituais 60 mil. Oito páginas, em vez das costumeiras dezesseis. Isso graças aos fundos oferecidos por outras plataformas da mídia.
Mas é importante frisar: “Não somos todos Charlie” porque não se tratou de um ataque contra a “imprensa livre”.
A República foi atingida nestes últimos dias. É preciso mudar o slogan para deixar claro o seguinte: nossa luta, neste caso, é contra o terrorismo.
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Outros textos:
Luiz Fernando Veríssimo (aqui)
Dorrit Harazim (aqui)
Demetrio Magnoli (aqui)
Leonardo Padura (aqui)
José Roberto de Toledo (aqui)
Alberto Dinnes (aqui)
Cacá Dieguez (aqui)
Ser ou não ser?
Eu sou.
Abaixo alguns bons textos e argumentos do cartunista Laert do teólogo Leonardo Boff e dos jornalistas Eugênio Bucci e Gianni Carta. E veja também links para as opiniões de Luiz Fernando Veríssimo, Dorrit Harazim, Demétrio Magnoli, Leonardo Padura, José Roberto de Toledo, Alberto Dinnes...
Laerte: no Brasil Charlie Hebdo não existiria
09/01/15 17:48
Encerrando o ciclo virtuoso de entrevistas deste blog, decidi visitar a cartunista Laerte em sua agradável casinha no Butantã, para papearmos sobre Charlie Hebdo e os tenebrosos acontecimentos de Paris.
Como se sabe, Laerte é uma das maiores cartunistas do Brasil. Personagens suas como os Piratas do Tietê entraram para a história. Suas tiras, que pelo menos para mim são as mais inspiradas, continuam sendo publicadas diariamente na Folha de S. Paulo.
Por conta das opiniões que andou divulgando a respeito do atentado, Laerte foi ameaçada no facebook e teve que lidar com comentários do tipo, “não deviam ter matado o Glauco. Mataram o cartunista errado”.
De uns tempos pra cá Laerte se percebeu como uma pessoa transgênera e me recebeu, muito bem por sinal, acompanhada de suas duas gatas, vestindo saia e blusa, havaianas rosas e as unhas feitas pintadas de vermelho. A entrevista ocorreu em seu estúdio, entre pilhas de livros, algumas contas a pagar, um computador turbinado e a boa e velha prancheta de desenhos.
Laerte estará presente amanhã no ato em solidariedade aos colegas do Charlie Hebdo, que está sendo organizado pela secretaria de direitos humanos, sindicato dos jornalistas e entidades de cartunistas. A partir das 11 hs, em frente à Praça das Artes, no Centro.
SOBRE O BLOG – é com um certo aperto no coração mas de cabeça erguida que anuncio o fim das atividades deste blog. Queria agradecer primeiramente a Folha e o UOL, que me deram suporte e abriram espaço para que pudesse desenvolver um trabalho independente e autoral, tendo como objeto a produção de entrevistas longas, com espaço de sobra para a reflexão, com personalidades das mais diversas áreas. Foram dezenas delas. Romário, Jean Willys, Marcelo Freixo. Fernando Meirelles, Marcelo Tas. Guilherme Boulos (MTST), Pablo Capilé, MPL. Maria Rita Kehl, Marcio Pochmann. Chacal, Gerald Thomas. Bela Gil. E outros tantos que ajudaram a manter este blog na linha de frente do noticiário com ideias inspiradoras ou polêmicas.
Também queria agradecer Tracy Segal, intrépida atriz carioca que com seu repertório e sensibilidade se tornou parceira frequente nas entrevistas e na concepção do blog.
Por fim, e principalmente, a audiência que demonstrou interesse e fôlego em ler e comentar entrevistas extensas e mais aprofundadas que chegaram a durar mais que três horas.
A todos vocês, um excelente 2015. E para quem quiser continuar acompanhando as ‘kachanices’ deste blogueiro, é ligar a televisão nos sábados à tarde. A gente se encontra no Caldeirão do Huck!! Um grande abraço, Kachani.
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Qual a influência do humor praticado pelo CH em sua vida?
Pra mim pessoalmente fez parte das informações do final dos anos 60 que me convenceram de que era isso que eu queria fazer.
Nesse final dos anos 60 essas coisas todas, CH, anarquista e porra louca francesa, a contracultura americana, a porra louquice californiana e o Quino, mais essa combinação com o Pasquim, foi o que forjou a gente.
Muitos muçulmanos relataram um choque cultural, com a charge sobre o profeta.
Acho que no Brasil nenhuma dessas capas da Charlie Hebdo teria sido feita. A gente não faria nem Family Guy, a gente não faria nem o South Park, nem Simpsons a gente faria, porque humor tem a ver com a cultura do país. Humor é um vínculo com a população local.
O Charles Hebdo está na França, estão falando com uma população de porra loucas que se julgou durante séculos dona cultural do mundo, e até hoje se acha. Estranham quando você não fala francês. Wolinski não falava uma palavra de inglês ou espanhol.
E por que o Brasil não seria capaz de produzir as capas da Charlie Hebdo?
A formação cultural é outra, tem a ver com compromissos, arranjos de acomodação. Nunca se praticou no Brasil o debate claro. As pessoas tendem, no cotidiano, a acomodar posições, mais que debater ideias. No Brasil o debate vira briga em 2 segundos.
Não que no Brasil não se fale porra louquices ou se deixe de fazer humor agressivo. Mas temo que no Brasil esse tipo de humor só aconteça com pessoas que claramente não têm poder. Chutar cachorro frágil. Digo isso porque lembro de várias situações em que o Danilo Gentili voltou atrás na TV e pediu desculpas: para a comunidade judaica, para a Preta Gil – ele morde e assopra. Aqui existe um negócio que é o respeito a “otoridade”, que é um fato.
E o Pasquim?
Tinha a anarquia e um modo de lidar, mas não sei se iriam tão longe. Foram bastante agressivos em várias situações, mas o alvo principal era a ditadura. A França do Charlie Hebdo existia em um contexto em que não tinha ditadura fazia tempo. De Gaulle já estava nos estertores quando essa linguagem começou.
O Porta dos Fundos também faz bastante gozação. Houve bastante reclamação mas eles não pararam, não foram bloqueados. Sinal de que comunidade religiosa talvez não seja tão poderosa por aqui quanto a gente pensa.
E teve o caso do Rafinha Bastos.
Aí não tem a ver com liberdade de expressão. Tem a ver com o papel subalterno da mulher. Wanessa Camargo não abriu a boca durante todo o processo, que foi movido até pelo feto dela. O autor era o marido dela, era uma briga de homem.
Uma briga idiota, que podia ser respondida com um simples “Rafinha, cresça e apareça”. Mas não, virou um processo porque a honra do marido foi ultrajada. E era um cara rico. Uma coisa de poder econômico e de poder machista que envolveu o Rafinha. Acho a piada idiota mas fiquei do lado do Rafinha.
Qualquer tipo de piada é válida no final das contas?
Hugo Possolo falou uma coisa linda. Você pode fazer piada de qualquer coisa, o que importa é saber de que lado da piada você está. Acho isso muito profundo, porque mostra que toda piada é ideológica, não existe piada só piada. Olha as capas do CH: não são só piada, são declarações, é um discurso ideológico, violento, agressivo, muito engraçado também.
A indignação com a charge de Maomé tem razão de ser?
Maomé apareceu pelado de quatro com estrela no cu. Os caras fizeram coisas… a gente não faria isso nunca. Eu não sei o que eu faria pessoalmente se fosse editor do CH. Por muito menos eu caguei nas calças na época do ‘Balão’ em 72. Era um fanzine, Paulo Caruso fez uma história linda, de uma mulher no parque que não queria dar pra ele, uma história linda e engraçada, e eu caguei nas calças. Pensei: meu Deus isso vai atrair a repressão.
É saudável existir um CH para a sociedade.
Não só saudável. É significativo que ele seja francês. Na Inglaterra tem uma liberdade de expressão parecida, mas eles não fariam isso. O humor britânico é diferente. Monty Python fez “ A vida de Brian” que mexe com judaísmo, com religião e um monte de coisa, é violentíssimo também, mas tem essa elegância.
Isso tudo me faz pensar sobre as construções teóricas sobre o humor.
Em primeiro lugar, que o humor é humano, não existe humor que ridicularize coisas ou animais. É sempre humano. Em segundo lugar, é sempre grupal. Não existe humor produzido nem por um indivíduo nem para um indivíduo. Terceira coisa é algo que Bergson falava, que acho interessante, que nunca consegui apreender totalmente, é a ideia de que o alvo da ação humorística é o momento em que o ser humano deixa de ser humano, quando ele age mecanicamente. Quando se coisifica.
Humor e preconceito se cruzam?
Muitas vezes, porque quem faz a piada precisa contar com a sintonia do público. Se você entra com uma informação polêmica, que é nova, você não obtém risadas, obtém estranhamento, agressividade, estupor. Quando os caras invadem a redação do CH não é piada, estão produzindo uma tragédia e nossa reação não é rir. Agora, se alguém atirar sapato na cara do Bush é muito engraçado.
Fiz uma historinha com o Alzheimer kid que adorei na época, um sujeito saindo correndo na cidade avisando que kid veio pra matar. Ele veio pra matar mas não lembrava quem. É engraçado mas um monte gente reclamou, Alzheimer é uma tragédia.
Tem como fazer humor sem isso?
Renato Aragão disse em entrevista que no seu tempo viado e preto não reclamavam quando se fazia piada sobre eles. Não tinha dor? Tinha. Mas socialmente não eram grupos empoderados. Tinham que ser cúmplices das humilhações que estavam sofrendo.
Um humor que desse vazão às ideias de Bolsonaro por exemplo, é legítimo em sua opinião?
Tem o Danilo Gentili por exemplo. É legítimo que exista esse tipo de humor. Mas ele tem que ser criticado, enfrentado. Faz parte de um pensamento que tem que ser enfrentado.
O Gentili faz piada que humilha as pessoas e as conduz a uma situação de perda, como no caso da doadora de leite que ele chamou de vaca e coisas piores possíveis – ela foi ridicularizada em sua cidade, não podia sair na rua, entrou em depressão.
Os fundamentalistas islâmicos também querem enfrentar o humor, só que pegando pesado em armas.
O objetivo real não é enfrentar o ataque humorístico, o objetivo real é político. O objetivo não era atacar a liberdade expressão. Acho que estão cagando pra liberdade expressão.
Você concorda com a colocação, de que o atentado ao Charles Hebdo foi o “11 de setembro da liberdade de expressão”?
Não gosto, acho tola e apressada. Acho que o que foi atacado não foi a liberdade de expressão. É uma tática para um jogo político mais complexo e perigoso. O jihadismo não tem a pretensão de controlar a liberdade de expressão na França. Este é um traço que vem desde a Comuna de Paris.
Não houve ataque à liberdade de expressão?
Houve um ataque à liberdade de expressão, mas não é este o objetivo estratégico. Por que não atacam a direita anti-islâmica? Porque não interessa. Querem criar uma confusão que visa comprometer todo o sistema. Se atacassem só os fascistas seria uma espécie de limpeza, que até interessaria (risos). Mas o que os terroristas querem é movimentar a opinião massiva. Eles sabem que o sentimento xenófobo vai se exacerbar, e isso pode gerar políticas militaristas de intervenção no Oriente Médio – isso tudo interessa ao Estado Islâmico, um grupo que não está ligado à idéia de construir um Estado, está ligado em construir guerra.
Por que os ataques contra o fascismo não acontecem?
É improdutivo dentro do ponto vista da tática de gerar o terror, a confusão é o que interessa, o irracionalismo. O que embasa o desejo terrorista não é uma construção racional de um coletivo árabe de uma liberdade de expressão, a ideia é outra, de propor uma ideia de guerra jihadista contra o mundo. É uma ideia louca, que é alimentada por Bushes da vida, Olavos de Carvalho da vida. Tentar construir a ideia de um choque de culturas, onde um precisa prevalecer dentro dessa lógica. ‘O que deve prevalecer é o nosso lado, precisamos destruir o outro’.
Qual sua conclusão sobre o atentado ao Charlie Hebdo?
Não existe ainda, tenho procurado ligar os pontos. É aterrorizante o suficiente para abalar as convicções da gente. Agora quais convicções, não sei. De princípio tenho visto que nas exibições de força no facebook, as pessoas se aferram às posições delas e fazem trincheiras de onde atiram.
Tenho tentado entender fora da dor e do sentimento de perda, pois amava e admirava o CH, tento entender politicamente o que está acontecendo. Começam os ataques às mesquitas e restaurantes árabes, ou aos minimercados judaicos… Isso que vai gerar, é um padrão estimulado por grupos de direita que querem construir uma política de exclusão dentro da Europa.
E sobre os acontecimentos de hoje?
A morte dos irmãos? Não tenho o que comentar, sério. Acho que continua em marcha o projeto de irracionalismo.
Como assim?
11/9 salvou a vida do Bush, um político medíocre e desprestigiado que vinha de uma eleição contestada. Foi transformado em herói e abraçou as táticas militaristas e intervencionistas.
Penso porque esses fdp fizeram isso. É que no final das contas o fundamentalismo e os grupos de ultra-direita xenófobos se alimentam. Foram feitos um para o outro. Haja entendimento real ou não, na prática a porra louquice atende ao clamor da porra louquice.
Mas não sei isso é coisa de malucos. Pode ser um jogo muito mais frio do que a gente pensa, e é isso que me aterroriza – ver que não é maluquice. Esse jogo frio pode envolver dinheiro, poder político e controle militar.
Consegue associar este atentado a um fato político da história brasileira?
No Brasil as pessoas foram presas, matou-se gente, pessoas ficaram acuadas. Mas a reação historicamente determinante à ocupação ditatorial se deu quando mataram um jornalista. Na mesma ocasião Manoel Fiel Filho, militante ativista operário foi morto. Todo mundo se comoveu mas não foi decisivo. Decisivo foi terem matado Vladimir Herzog, que era jornalista. Isso foi importantíssimo no jogo cultural que a ditadura estava tentando fazer naquele momento. Hoje sabemos que houve uma tentativa de golpe dentro do golpe, da linha dura, que foi frustrado porque eles foram mais longe do que podiam. Ao mesmo tempo podiam ir menos longe? A lógica deles é de montar canastra. Era o jeito que sabiam jogar.
10/01/2015
Há muita confusão acerca do atentado terrorista em Paris, matando vários cartunistas. Quase só se ouve um lado e não se buscam as raízes mais profundas deste fato condenável mas que exige uma interpretação que englobe seus vários aspectos ocultados pela midia internacional e pela comoção legítima face a um ato criminoso. Mas ele é uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos. Evidentemente não se responde com o assassianto. Mas também não se devem criar as condições psicológicas e políticas que levem a alguns radicais a lançarem mão de meios reprováveis sobre todos os aspectos. Publico aqui um texto de um padre que é teóloogo e historiador e conhece bem a situação da França atual. Ele nos fornece dados que muitos talvez não os conheçam. Suas reflexões nos ajudam a ver a complexidade deste anti-fenômeno com suas aplicações também à situação no Brasil: Lboff
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Eu condeno os atentados em Paris, condeno todos os atentados e toda a violência, apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões, sou da paz e me esforço para ter auto controle sobre minhas emoções…
Lembro da frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro, ninguém o merece, acredito na mudança, na evolução, na conversão. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem… Ainda estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa imprensa, à honestidade, que a revista Veja, a Globo e outros veículos da imprensa brasileira promoveram nesta última eleição.
A Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970, é mais ou menos o que foi o Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a direita europeia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais…
O editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona Chollet (críticas que foram resolvidas com a demissão sumaria dela). Ele ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã, ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011…
A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”, vítimas de preconceitos e exclusões. Após os atentados do World Trade Center, a situação piorou.
Alguns chamam os cartunistas mortos de “heróis” ou de os “gigantes do humor politicamente incorreto”, outros muitos os chamam de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo, como os comentários políticos de colunistas da Veja, são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.
O primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos…
Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porque? Para que?
Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses, famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerância (ver Caso Dreyfus), como o STF no Brasil, que foi parcial nas decisões nas últimas eleições e no julgar com dois pessoas e duas medidas caos de corrupção de políticos do PSDB ou do PT, deram ganho de causa para a revista.
Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã e contra o cristianismo, se tem dúvidas, procure no Google e veja as publicações que eles fazem, não tenho coragem de publicá-las aqui…
Mas existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo alusões à violência, com trocadilhos infames com “matar” e “explodir”…). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam…
E aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Mas piada são sempre preconceituosas, ela transmite e alimenta o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas…
Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus…
Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.
“Mas isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados, como o racismo ou a homofobia, isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim…
Deixo claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na forma de processos judiciais do que de balas de fuzis ou bombas.
Voltando à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada”. Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até… charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de culto islâmico na França foram atacados, um deles com granadas!, nessa madrugada, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos”, e ela sabe disso).
Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro do atentado, eu não sou Charlie. Je ne suis pas Charlie.
Sou livre para rir de você
O direito de caçoar dos outros é uma preciosa conquista da humanidade. Devemos valorizá-lo e protegê-lo
EUGÊNIO BUCCI
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Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório”
Carlos Pena Filho
Os cartunistas assassinados em Paris se converteram em mártires da alegria. Morreram em nome do direito que temos de rir de nossos semelhantes. Isso mesmo: um direito. A liberdade de pensamento, a liberdade de reunião e a liberdade de imprensa incluem a liberdade de sátira. A liberdade de fazer caçoadas em público. Na frente de todo mundo. Em pouquíssimas formas de expressão o tema da liberdade é tão sensível quanto numa anedota. Em sua forma breve, na fugacidade de sua graça instantânea, uma tirada sardônica talvez seja a expressão mais fiel de como a liberdade pode ser delicada, efêmera, indefesa como um lírio no campo. Se você quiser, um lírio com nariz vermelho de palhaço, mas ainda assim um lírio no campo. Vulnerável, gracioso, gratuito e engraçado.
A liberdade não é uma piada, por certo, mas, se não puder ser alegre, não será liberdade. Daí ser tão chocante admitir que os mártires da redação do Charlie Hebdo são mártires da alegria. Saímos dessa história mais tristes. Ainda que o atentado fosse uma espécie de morte anunciada, ainda que ele não fosse exatamente inesperado, saímos um tanto apalermados. O que nos consola é que temos a chance de sair disso mais livres – se tivermos mais consciência do significado da liberdade. Sobre as conquistas de liberdade sobre as quais se assentam nossas melhores utopias. São essas conquistas que nos mantêm vivos, como indivíduos e como sociedade. Hoje, mais que nossa alegria, essas conquistas se tornaram o alvo preferencial do terror. O atentado de Paris nos intima a saber valorizá-las e protegê-las. Ainda mais.
O que o terror não aceita não é o que as pessoas fazem com a liberdade. O terror, como o totalitarismo, não aceita a existência da liberdade, independentemente do uso que cada um dará a ela. Assim, o terror não aceita a democracia. A simples possibilidade de que os encarregados de administrar a coisa pública, nossos negócios comuns, sejam eleitos por todos é incompatível com os fundamentos do terror. A democracia está assentada sobre a crença de que, se todos participam das decisões que afetam a coletividade, elas serão mais sábias e mais legítimas. O direito à educação e o direito à informação são uma decorrência lógica: sendo mais bem educado e mais bem informado, o cidadão estará mais preparado para delegar e fiscalizar o poder e, com isso, a democracia funcionará melhor. Também por isso, as liberdades de expressão, de culto, de pesquisa científica, de opinião, de reunião e de imprensa precisam estar garantidas. Se não há liberdade de expressão, de que modo poderemos conhecer as ideias uns dos outros? Eis por que sua liberdade depende da minha liberdade. Quanto maior a minha liberdade, maior a sua.
Os revolucionários franceses do século XVIII perceberam isso. Em 1789, ao redigir a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, afirmaram, no artigo 11, que “a livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem”. O mesmo princípio se manifestaria dois anos depois, na Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que proibiu o Congresso de legislar contra a liberdade de imprensa. Desde então, todas as constituições democráticas reafirmam o mesmo princípio, a do Brasil inclusive. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, o primeiro artigo assegura que “todos os homens nascem livres e iguais”. Nesse documento histórico, considerado o ponto mais alto da afirmação dos direitos humanos da história da humanidade, o adjetivo “livre” é o primeiro a ser invocado para definir o ser humano. Isso significa que os Direitos Humanos não apenas incluem, mas começam com a liberdade. E, se alguém precisa de alguma razão para ser livre, vai aqui a melhor de todas: rir. Nós temos o direito de rir.
Um dos nossos muitos problemas é que essas conquistas são muito recentes. Têm coisa de 200 anos e, em suas formas mais aperfeiçoadas, não passam de meio século. Ainda não foram bem compreendidas, não se decantaram e correm riscos extremamente graves. Quando dois terroristas, em nome de uma verdade implacável, sentem-se autorizados a matar o semelhante simplesmente porque ele ri e faz rir, não é apenas um grupo de pessoas que eles assassinam. Eles também feriram de morte os fundamentos da democracia e os ideais da convivência respeitosa entre nós, sejamos franceses, sauditas ou brasileiros.
Que verdade é essa que não suporta o gracejo? Qual é a verdade em nome da qual se mata alguém sumariamente? Uma verdade santa? Uma convicção religiosa pode ter validade indiscutível na consciência de um indivíduo, mas esse indivíduo, por mais fiel a seu Deus, não poderá impor sua convicção aos demais. Nas democracias amadurecidas, o Estado é laico, não tem religião, e isso não porque os cidadãos devam ser ateus, mas justamente pelo contrário. Somente num Estado laico os cidadãos terão liberdade real de escolher cada qual sua própria fé.
Também essa conquista, a da liberdade religiosa, é muito recente. Ela nos vem do século XVII, e não sem traumas. Em grande parte, devemos o princípio da tolerância religiosa ao liberal inglês John Locke, que recomendou que o Estado não se imiscuísse nos assuntos das igrejas – e vice-versa. As igrejas podem ter suas verdades absolutas, seus papas infalíveis, seus dogmas imperturbáveis, não o Estado. No Estado democrático, tudo é discutível, falível, pode ser contestado e reformulado.
SEM DOGMAS
Capa do Charlie Hebdo de 2012. A charge de um muçulmano numa cadeira de rodas empurrada por um judeu ortodoxo – em que ambos dizem: “Não façam piada disso!” – era uma alusão ao filmeIntocáveis (Foto: Piero Oliosi/Polaris/Newscom)
Nem mesmo a ciência se pretende infalível. A ciência só merece crédito porque está aberta ao questionamento, à crítica e a toda sorte de refutações. Nós não acreditamos nos cientistas porque eles não erram nunca, mas exatamente pelo oposto: acreditamos nos cientistas porque sabemos que, se eles errarem, serão contestados e seus experimentos serão demonstrados fajutos pelos próprios cientistas. Na ciência, na Justiça, na política, na universidade, na imprensa, tudo o que temos de melhor tem seu alicerce não numa verdade inabalável, mas na abertura que nos permite discutir qualquer verdade que seja. E rir das verdades é uma maneira inestimável de discuti-las, além de muito mais divertida.
Parece um paradoxo, mas é por isso que podemos confiar uns nos outros. Somos confiáveis porque nos sabemos imperfeitos, falíveis, inacabados. A partir dessa consciência, aprendemos a reconsiderar nossos pontos de vista e condutas. Só quem se julga dono da verdade absoluta é capaz de fanatismo, e o fanatismo associado às armas é um delírio de perfeição de quem se vê associado a Deus. A tolerância, ao contrário, vem de saber-se humano, passageiro, transitório. A tolerância ainda é, porém, uma conquista histórica a ser alcançada. Ela também está sob ameaça. E, mesmo assim, é preciso rir.
Gianni Carta
Protestamos contra o terrorismo, não por Charlie
Manifestantes foram às ruas para repudiar radicais islamistas e não para defender a liberdade de imprensa. Por Gianni Carta, de Paris
Loic Venance / AFP
Manifestantes em Paris durante a Marcha Republicana realizada na capital francesa
Slogans políticos são importantes porque definem as causas pela quais lutamos. Quem ocupa Wall Street quer acabar com a arrogância dos banqueiros, nesse mundo globalizante no qual eles são protegidos enquanto o povo paga pela sua ganância e impunidade. “Indignados”, por sua vez, protestam contra a austeridade imposta pela chanceler alemã Angela Merkel, para citar um exemplo.
No domingo 11, mais de 3 milhões de franceses e cidadãos mundo afora marcharam contra o terrorismo e pela liberdade de imprensa. Políticos de todas inclinações ideológicas e cidadãos comuns de todas as fés mostraram aos radicais islamistas que não se dobram diante do terrorismo.
Tratou-se de um ato necessário para reforçar os valores desta República, onde os direitos do homem são primordiais.
Como tem se dito por aqui, a França viveu seu 11 de setembro. Em três dias de ataques terroristas, 17 pessoas inocentes perderam a vida. Três terroristas foram mortos pela polícia, e dois continuavam soltos nesta segunda-feira 12, inclusive a mulher de um deles.
Tudo começou na quarta-feira 8, quando os irmãos Chérif e Said Kouachi, de 32 e 34 anos, invadiram o semanário satírico Charlie Hebdo. Deixaram 10 mortos, entre eles o editor da publicação, Charb, de 47 anos, e mais quatro dos melhores cartunistas do país, Wolinski, Cabu, Honoré e Tignous.
Fazia parte da célula terrorista outro homem, Amedy Coualiby. Em um ataque contra um supermercado kosher matou quatro reféns. Coualiby teria sido responsável pela morte de uma policial no sul de Paris. E teria ferido um homem a praticar jogging em um parque.
A França continuará em estado de alerta máximo por semanas.
O presidente François Hollande esteve à altura: exprimiu-se com objetividade, com dignidade e no tom apropriado. Fez mais: aglutinou 40 estadistas de peso, entre eles o presidente da União Europeia, Donald Tusk, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas, o premier britânico David Cameron, Angela Merkel e o premier israelense Benjamin Netanyahu.
A marcha parisiense reuniu mais de 1,5 milhão de cidadãos. Desfilaram importantes símbolos da República: a tricolor, Joanna D’Arc, e Marianne, a simbólica mãe da nação que encarna os valores “Égalité, Liberté et Fraternité”.
Buquês de flores e velas foram colocados nos lugares onde ocorreram atentados, ou onde caíram vítimas. Em uníssono, o povo entoou a revolucionária Marselhesa, hino nacional.
Lia-se em camisas, bandeiras, cartazes e faixas: “Je suis Charlie! Nous sommes Charlie!” As caricaturas do Charlie Hebdo eram alçadas para as câmaras de televisão. Numerosas pessoas escreveram em suas mãos ou testas um grande “C”, para Charlie.
Pela enésima vez, o ministro do Interior Bernard Cazeneuve explicou o motivo do “C”: “Esse é um protesto também para defender a liberdade de imprensa”.
Entenda-se: os dois irmãos Kouachi não são diferentes de Coualiby, responsável pelas mortes dos quatro reféns no supermercado kosher, e provavelmente da policial. Mereceram o fim que tiveram. Como todos extremistas islamistas, os dois irmãos eram fanáticos do apocalipse. Cometeram, a sangue frio, armados como soldados, uma carnificina ao tirar a vida de jornalistas inocentes e policiais a simbolizar a França no seio de Paris.
No entanto, o ataque contra o semanário Charlie Hebdo foi um ato terrorista, não contra a liberdade de imprensa. Se o Le Monde tivesse sido o alvo, teria sido um ataque contra a liberdade de imprensa.
Jamais teria um editorial do vespertino defendido a tese de que o profeta é um jihadista. E o Le Monde não publicaria uma charge de Maomé com uma bomba no turbante, como o fez o semanário Charlie Hebdo. A liberdade de imprensa conhece seus limites, especialmente quando o tema envolve religião.
Charlie Hebdo é um semanário satírico famoso pelas polêmicas contra as três religiões monoteístas.
Em novembro de 2011, um coquetel molotov havia provocado um incêndio e destruído a velha redação do semanário satírico. À época, o ataque terrorista tinha elos com o fato de o semanário ter sido intitulado Charia Hebdo (Semanário da Lei Islâmica). Na capa, uma caricatura de Maomé, convidado para ser o redator chefe da edição. Dizia a charge: “100 chicotadas para aqueles que não morrerem de rir”.
Charb recebeu várias ameaças de morte. Desde então o diretor do semanário vivia sob proteção policial. Idem a nova redação do jornal.
É claro que Charb e os jornalistas/caricaturistas do semanário satírico não mereciam ser vítimas dessa barbárie.
No entanto, aceitaram o risco.
Outro a aceitar o risco foi o filósofo Robert Redeker. Em 2006, escreveu um artigo criticando a religião muçulmana em um diário que representa a imprensa “livre”, o Le Figaro. A Al-Qaeda colocou a prêmio cabeça de Redeker, conselheiro do jornal acadêmico Les Temps Modernes, fundado por Jean-Paul Sartre. Desde então, Redeker, entrevistado várias vezes por esta CartaCapital, vive sob proteção policial em endereços desconhecidos.
Em suma, não houve ataque contra o Le Figaro, visto que o artigo era assinado por Redeker. O diário se desolidarizou de Redeker.
Na quarta-feira 14, um milhão de exemplares de Charlie Hebdo serão vendidos nos quiosques, em vez dos habituais 60 mil. Oito páginas, em vez das costumeiras dezesseis. Isso graças aos fundos oferecidos por outras plataformas da mídia.
Mas é importante frisar: “Não somos todos Charlie” porque não se tratou de um ataque contra a “imprensa livre”.
A República foi atingida nestes últimos dias. É preciso mudar o slogan para deixar claro o seguinte: nossa luta, neste caso, é contra o terrorismo.
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