Do Blog Opiniões (aqui):
Artigo do domingo — Entre o céu e o mar
(Para Beth Araújo, Severina Cavalcanti, Fátima Castro, Aucilene Freitas, Jorge Rosa e Bernadete Bogado)
Era 2009. Caminhávamos conversando à beira-mar, quase na curva da foz do Paraíba, numa faixa de areia que hoje é oceano. Tentava animar Kapi, que estava hospedado em minha casa, em Atafona, após um período de internação no Hospital Ferreira Machado por conta de uma tuberculose. Mais do que a recuperação pela doença oportunista, entre as tantas que acham brecha na imunidade comprometida de um soroposito, o ânimo do genial criador estava abatido pela perspectiva do ostracismo, dolosamente banido pelo poder público municipal depois que os Garotinho reassumiram o poder em Campos, naquele mesmo ano.
Foi então que ele teve, de chofre, a ideia:
— Vamos pegar seus poemas sobre Atafona e juntar mais uns meus, do Artur (Gomes) e da Adriana (Medeiros) e montar uma peça. “Pontal”! O nome vai ser “Pontal”!
Ao que eu indaguei, meio assustado:
— Como assim? Vamos montar onde? Quando? Como transformar poemas em texto de teatro?
— Isso tudo você deixa comigo! — disse em tom propositalmente afetado, mas seguro de si, com uma risadinha mefistotélica e os olhos brilhando.
Sem respostas lógicas, não precisava de outra que não fosse aquela expressa em sua súbita recuperação física e psicológica. Mesmo para alguém, como eu, envolvido em trabalho de criação, era impressionante como em Kapi isso era uma demanda tão vital, literalmente, quanto o ar que os demais precisam para respirar.
Voltamos da caminhada, almoçamos, eu tomei banho, entreguei os poemas que ele pediu e segui a Campos para meu trabalho, deixando Kapi imerso no dele. Quando voltei à noite, já estava tudo resolvido:
— Vamos montar no Bar do Bambu (antiga casa de barco da família Aquino, que o mar depois levou). Serão apresentações quinta, sexta e sábado, em quatro semanas entre janeiro e fevereiro do ano que vem (2010). Os poemas serão interpretados como causos contados por pescadores de Atafona. Yve (Carvalho) e Sidney (Navarro) serão os atores. Só falta arrumarmos um terceiro, para dividir melhor os textos.
O terceiro homem, no furto ao filme clássico de Carol Reed, acabou sendo o Mairus Stanislawiski, um gaúcho bicho grilo desses que costumam brotar em Atafona como bicho de pé, sem nenhuma experiência anterior como ator. Comigo e Sidney toureando os conflitos entre as personalidades de diva de Kapi e Yve, sinceramente não sabíamos o que esperar na noite de estreia de uma peça com atores locais (à exceção gaúcha e desconhecida), diretor local e autores locais, num lugar sem luz elétrica e de difícil acesso pela areia.
Grande foi a nossa surpresa quando cerca de 80 pessoas tiveram sua silhuetas atraídas bruxuleantes pela fogueira acesa, no encontro das águas do Paraíba e do Atlântico, em frente ao Bar do Bambu, lotando o antigo galpão que tinha o centro como palco, iluminado internamente por lamparinas e lampiões. Gente de todas as idades e estilos, cujo o boca a boca não deve ter sido ruim, pois o público chegaria a dobrar nas apresentações seguintes, que ganharam ainda mais força dramática quando o Mairus foi substituído pelo Artur Gomes, coautor e também ator do espetáculo, fazendo com que tivéssemos que improvisar uma arquibancada de areia e madeira na entrada do bar transformado em teatro.
Conheci Kapi ainda nos anos 1980, quando eu ainda era um adolescente fascinado pela vida boêmia na qual ele já era uma lenda da planície, dono do mitológico Bar Vermelho, point do underground goitacá. Mas nosso contato se estreitou mais na década seguinte, quando passei a escrever poesia. Logo no primeiro concurso em que entrei, no FestCampos de 1992, realizado no hoje abandonado anfiteatro do Parque Alberto Sampaio — acreditem! aquele lugar já foi palco de poesia —, tendo o Artur Gomes como intérprete de dois trabalhos selecionados à final, grande foi minha surpresa. Aos 19 anos, acabei tirando primeiro e segundo lugar, respectivamente com “Calvário” e “Caçula”, poemas que não guardo, posto serem frutos de uma fase com a qual depois romperia.
Só mais tarde fui saber que, compondo o júri, foi Kapi quem bateu pé contra uma manobra “politicamente correta” que visava me dar apenas um prêmio, abrindo espaço para mais gente:
— Valem o regulamento e as notas dos jurados! — E, graças a Kapi, valeram mesmo.
Alguns anos depois, lembro de um marcante encontro ao acaso, na sua casa em Atafona. Era fevereiro de 1997, eu vinha ouvindo aquele verão todo, até quase “furar” o CD, o acústico do Eric Clapton, com o qual a MTV inaugurou sua exitosa série Unplegged. Por sua vez, Kapi estava cheio de histórias para contar, recém-chegado de uma viagem junto com sua imprescindível amiga Beth Araújo e sua turma de formatura da faculdade de turismo, por mais de 30 dias, entre Costa do Marfim, Líbano, Egito, Israel, Jordânia e França. Velas enfunadas ao vento nordeste, passamos a tarde naquela varanda atafonense, conversando sobre tudo que ele trazia ainda fresco do berço da civilização humana, ouvindo blues, tomando o vermute e fumando os gauloises trazidos há pouco de Paris.
Passado o verão, no final daquele ano, Kapi sofreu sua primeira grave crise advinda do HIV, chegando a ficar em coma. Depois que ele começou a se restabelecer, fui vê-lo internado no Hospital Ferreira Machado, sempre sob a guarda zelosa da mãe, a saudosa Severina. Ao final da visita, entreguei-lhe “órbita de hal”, poema a ele dedicado, que trazia as lembranças daquela tarde em Atafona, assim como a comunhão com seu estado de saúde, por conta de um acidente que também me deixara entre vida e morte alguns anos antes. Creio que foi ali, naqueles versos escritos em tinta de solidariedade, que da amizade se fez uma fraternidade de vida inteira
Com base nessa cumplicidade, se formou uma parceria artística inquebrantável, na qual eu não teria mais nenhum poema em festival cuja interpretação não fosse dirigida por Kapi. Comigo como poeta, ele como diretor e o Yve Carvalho como ator, o trio colheria relativo sucesso em Campos e no Rio.
Nos FestCampos, bati na trave algumas vezes, com um segundo lugar em 2000, com “epifania”, e um quarto lugar em 2006, com “cantos da pequena”, até novamente vencer com “muda”, em 2007, na minha despedida dos festivais de Campos. Além dos limites da província, a parceria também arrebanharia o primeiro lugar de poema, com “conversão a mais de uma atmosfera”, bem como de intérprete, com Yve, no 11º Concurso Nacional de Poesia Francisco Igreja, em 2008, realizado no auditório Machado de Assis, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Por sua vez, de pena própria, marcada pelo ritmo da oralidade trazido do teatro, Kapi também ganharia duas vezes o FestCampos: em 2002, com “Canção amiga”, e em 2005, com “Goya Tacá Amopi”.
Com mais de 100 peças encenadas, inclusive no Rio, Kapi foi um divisor de águas no teatro de Campos. Ainda nos escombros, inaugurou o Teatro Trianon, do qual tanto se ufana quem segregou a grande artista, onde encenou “Gota D’Água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes, em 1995. Mas a montagem da qual mais se orgulhava, na qual deu vazão às suas ambições artísticas sempre épicas, foi “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles, em 1998. Na superprodução, dirigiu dezenas de atores no cenário perfeito (e real) da Igreja e Mosteiro da Lapa.
Como passagens marcantes também como carnavalesco e organizador do Carnaval de Campos, Kapi foi, talvez, o artista mais completo que conheci nesta planície cortada pelo Paraíba do Sul. Campista filho de uma retirante nordestina, trespassou a origem humilde e os preconceitos de raça e orientação sexual com gumes afiados de talento e coragem. Se nunca cuidou de si como de sua arte, ainda assim foi um bravo resistente. E sobre ele não mente o também diretor teatral Fernando Rossi: “Mais lamentável é saber que esse processo da sua morte foi acelerado pela falta de apoio à sua arte”.
Junto com meu filho, de quem Kapi foi também grande amigo, a coisa que mais me importa nesta vida, ou em qualquer outra, é minha arte. E, como Aluysio Barbosa fez no jornalismo, foi Kapi quem me ensinou que arte é coletiva, ou de ninguém.
Em contrapartida, ele também dizia não acreditar em artista humilde. E tanto à sua vaidade, quanto à minha, às de Yve, Sidney, Artur e Adriana, afaga o fato de que aquela montagem de “Pontal” tenha sido o último grande momento de um lugar mágico que deixou de existir, engolido pelas ondas, como seremos todos nós.
Pode parecer teatro, e depois realmente foi, mas naquela mesma caminhada no Pontal, na qual Kapi pariu “Pontal”, nós dois vimos um golfinho saltar das águas e descrever em arco suas piruetas no espaço. Continuamos acompanhando as aparições do seu dorso e dos seus companheiros, até que sumissem entre o céu e o mar.
Publicado hoje na Folha da Manhã
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