Artigo do domingo — Além do rio, nada
O primeiro a estudar a formação da
planície goitacá a partir da ação do rio Paraíba do Sul foi o geólogo
canadense Charles Frederick Hartt (1840/78). Ele veio ao Brasil
integrando a famosa expedição Thayer, entre 1864 e 1865, comandada por
seu mentor, o zoólogo suíço Louis Agassiz (1807/73), defensor científico
do Criacionismo e grande opositor do naturalista inglês Charles Darwin
(1809/82) e sua Teoria da Evolução.
De qualquer maneira, foi nas pesquisas de Hartt reunidas em “Geologia
e Geografia Física do Brasil” (1870), nas quais o avanço do mar em
Atafona é pela primeira vez descrito, que nosso Euclides da Cunha
(1866/1909) se baseou para escrever “A Terra”. Este apanhado da formação
geológica do sertão brasileiro é o capítulo inicial de “Os Sertões”
(1902) e principal motivo para a maioria abandonar a leitura, ainda no
começo, deste necessário clássico da literatura nacional.
Dentro desta mesma literatura, talvez maior herdeiro de Euclides na
mestiçagem tanto entre ciência e romance, como do homem com seu meio, o
geólogo campista Alberto Ribeiro Lamego (1896/1985) externou em “O Homem
e o Brejo” (1945) grande parte das suas teses sobre o protagonismo do
rio Paraíba na formação da planície. Mais recentemente, os brasileiros
Kenitiro Suguio, Jean-Marie Flexor e José M. L. Dominguez se uniram ao
francês Louis Martin, para comporem a oito mãos “Geologia do Quaternário
Costeiro do Litoral Norte do Rio de Janeiro e Espírito Santo” (1997).
Nela os renomados geólogos contemporâneos reviram grande parte das teses
de Lamego, mas permaneceram endossando o papel quase monoteísta do
Paraíba na gênese da planície em que deságua.
Desde quando a ciência ainda achava existir para afirmar a criação
divina, até nossos dias, apesar das revisões naturais que o tempo impõe
às teorias, ninguém que tenha se dedicado a estudar esta planície e o
rio que a corta, foi capaz de afirmar que a primeira existiria, não
fosse a ação direta do segundo. Os mesmos campistas, sanjoanenses e são
franciscanos que adoram reclamar da cor marrom das suas praias, talvez
nunca tenham percebido: o barro que lhes escurece o mar é o mesmo que,
carreado pelo Paraíba ao longo dos milênios, formou o próprio chão sobre
o qual caminham suas vidas, desde quando aprenderam a pisar.
Sem o rio, o mar provavelmente seria azul, mas avançaria sobre nossas cabeças até reencontrar a Serra do Imbé.
Ameaçado pelo projeto de desvio das suas águas na represa de Jaguari,
para atender à Grande São Paulo no sistema de Cantareira, o Paraíba
conseguiu confluir em sua defesa lideranças fluminenses tão impermeáveis
entre si quanto o governador Sérgio Cabral (PMDB) e o deputado federal
Anthony Garotinho (PR). Bem verdade que o governador paulista Geraldo
Alckmin (PSDB) pareceu não se importar muito com a reação de ambos,
chegando a afirmar depois que poderia fazer a obra, estimada em R$ 500
milhões e num prazo de 18 meses, mesmo com a discordância do Estado do
Rio.
E a revelação na sexta, por parte do procurador da República em
Campos, Eduardo Santos de Oliveira, de que o governo estadual de São
Paulo estudava desde 2008 o desvio do Paraíba para atender sua zona
metropolitana em períodos prolongados de estiagem, tendo depois chegado a
informar oficialmente ao Ministério Público Federal goitacá, em 2011,
que não tinha nenhum projeto de transposição do rio federal, apresentado
agora por Alckmin à presidente Dilma Rousseff (PT), reforça a impressão
de que os paulistas estão pagando para ver.
Para um Estado que ostenta o maior PIB e o maior colégio eleitoral do
Brasil, chamar transposição de “captação”, pode ser até além de um mero
“jogo semântico”, como bem definiu Eduardo.
Talvez com o beneplácito do governo federal em ano de eleição, aquela
que vence quem receber mais afluentes em voto e dinheiro, oxalá o jogo
não seja “ou dá, ou desce”. Tanto pior na São Paulo que, apesar de berço
petista, é dominada pelo PSDB de Alckmin. E diante dos 15 milhões de
paulistas atendidos pelo sistema Cantareira, como ficar à míngua na
simpatia enquanto se hidrata seu principal adversário nas urnas?
Na dúvida, até que haja um estudo técnico e apolítico de toda a Bacia
do Paraíba, nos três Estados que a integram, só a insanidade aconselha
mais um sangramento em seu curso de água doce, que já registrou língua
salina quilômetros adentro, à altura de Barcelos. Já na divisa dos
municípios de Campos e São João da Barra, é a vanguarda do avanço do mar
em Atafona, intensificado a partir dos anos 1950, quando outro desvio
fluvial foi feito, para atender outra região metropolitana.
A partir da barragem de Santa Cecília, em Guandu, que até hoje serve
de água o Grande Rio, já se perdeu a conta de quantas casas e ruas hoje
só servem aos peixes, na foz de um rio em queda de braço com o Atlântico
e tendões cortados pelo homem.
Com 1.137 km de extensão e 56.500 km2 de bacia, o Paraíba é um
grande rio. Acima do Equador, com 2.320 km de comprimento e bacia de
632.000 km2, o rio Colorado é muito maior. Escultor do famoso Grand
Canyon, como o Paraíba da planície goitacá, o Colorado foi alvo de
várias intervenções para captação d’água e geração de energia elétrica,
entre elas a Barragem Hoover, erguida nos anos 1930 e tida ainda hoje
como a grande obra de engenharia dos EUA.
Durante muito tempo, o modelo de transposição de águas adotado no
Colorado para irrigação de terras secas foi considerado exemplo a ser
seguido, inclusive no rio São Francisco, no Nordeste brasileiro. Mas nem
seu gigantismo bastou para saciar a sede humana e hoje o rio está
morrendo. Durante boa parte do ano, o Colorado sequer consegue mais
atingir sua foz, no Golfo do México.
Se o mesmo acontecer aqui, será um desastre maior do que a perda dos
royalties, já que o mal causado pela consequente salinização de toda a
Baixada do Paraíba, inviabilizando a agropecuária e as indústrias
sucroalcooleira e cerâmica, certamente durará mais do que as jazidas de
petróleo no fundo do mesmo mar que, sem a oposição do rio, prevalecerá
outra vez sua poderosa ação sobre a planície. Ademais, a captação d’água
em diversos municípios teria que ser feita a partir da dessalinização,
ou de fontes alternativas também já degradadas pela ação humana, como
Lagoa de Cima.
Pela pena do seu heterônimo e mestre Alberto Caeiro, o poeta português Fernando Pessoa (1888/1935) escreveu:
“Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia”
Quem, por sensibilidade e gratidão, ainda não pensou no que há para
além do Paraíba, que o faça por necessidade. Para quem habita a planície
goitacá, além do rio da aldeia, não há nada.
Publicado hoje na edição impressa da Folha.
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